O Baile do Cemitério

Os dois policiais vinham pela rua a pé, as pernas bamboleantes de cansaço, as vistas turvas de sono às três da manhã, torcendo para que nenhuma coisa acontecesse, pudessem chegar à delegacia, tomar um chá quente e ficar por uma hora ou duas com as pernas enroladas em um cobertor. Nada acontecia na cidade, não era preciso aquela preciosidade que o delegado ordenava: patrulhar pelas ruas! — É como ser vigia de cemitério — protestou o Cabo Fabrício. Nem bem o disse os dois ouviram […]

Tratamento de Recuperação

Despertou-me o silêncio. A noite parecia cortada ao meio, sangrando ainda, quando meus olhos se arreganharam para as trevas. Havia um silêncio espesso empoçado no quarto, o suor secava e me causava frio, na calma intensa da madrugada eu ouvi meu coração bater tão levemente que me senti ainda falecido, como se a minha alma mesma ainda revoasse por alturas possíveis. Mas não, eu estava ancorado à cama e à carne. Tentei me virar, mas a dor do movimento foi demais para minha pouca vontade. […]

“Riding the Lightning”

A primeira impressão de que eu estava no começo de algo estranho foi quando ouvi um tinir metálico vagamente ritmado. Logo acompanhado por vibrações graves e um zunido agudo que ia e vinha, numa oscilação que me pareceu familiar. Eu caminhava por uma rua estranha, muito ampla, com uma linha férrea à minha esquerda e uma linha de edifícios que, parede a parede, muravam o horizonte. As pessoas ao meu redor se vestiam para um frio moderado e não pareciam ouvir as mesmas sensações musicais […]

Um Exemplar de Burns

Original de Clark Ashton-Smith. Traduzido a partir da versão online em Eldritch Dark. Andrew McGregor e seu sobrinho, John Malcolm, eram precisamente idênticos, salvo um particular. Ambos eram inconfundivelmente escoceses, de tal forma que chegavam à caricatura: caras longas e lábios fechados, esguios e pobres ao ponto da penúria, ambos amavam de uma forma rude o solo áspero das vizinhanças de seus ranchos em El Dorado. A diferença estava em que McGregor, nativo de Ayrshire, era fantasticamente obcecado pela poesia de Burns, que citava em […]

O Ano do Gato

> Minha última participação no desafio EntreContos (aqui repostado com algumas correções de erros percebidos após a inscrição). O tema do mês era “histórias baseadas em música” e eu o ataquei utilizando como base para um conto a letra de “Year of the Cat”, sucesso de Al Stewart em 1975. Fiz isso porque a letra, em si, já continha o embrião de uma história. > Não é um texto de que eu particularmente me orgulhe (e eu nunca o antologizarei porque tenho sérias dúvidas sobre […]

A Perdição do Homem (Beatrix e Jeannelynne)

“Ó amiga e companheira da noite, ó tu que te regozijas no ladrar dos cães e no sangue derramado, que perambulas por entre as sombras entre as tumbas e trazes terror aos mortais! Gorgo! Mormo! Lua de mil faces, contempla favoravelmente os nossos sacrifícios”― H. P. Lovecraft (em “O Horror em Red Hook”) A porta se fechou e Beatrix suspirou o temporário alívio da primeira noite. Mas não se recostou para dormir, sabia-o impossível. Como recostar a cabeça em um travesseiro antecipando que o segundo […]

A Dama Pé de Cabra

> Conforme promessa antiga, eis minha primeira tentativa de transformar a antiga lenda portuguesa da Dama Pé de Cabra em um conto de terror ao gosto moderno. Preservei o tratamento em segunda pessoa para dar um ar medieval ao texto (que é, de fato, ambientado na Idade Média), e procurei evitar, ao máximo, toda modernização que violasse o espírito do original. Sendo assim, as personagens do sexo feminino são deixadas em segundo plano a ponto de nem terem nome. Esta versão, porém, expande a história […]

A Virgem do Sabá

Jovita emba­lava a menina nos bra­ços e Jerônimo as con­tem­plava, entre embe­ve­cido e des­con­fi­ado. Lembrou da noite em que a conhe­cera, não teve receios nem remorsos — sen­tiu-se, na verdade, cheio de orgu­lho de ter sido tão homem e recos­tou na cama, arfando o peito como se os pulmões inflassem dentro de uma estreita gaiola enferrujada e dezenas de nava­lhas subis­sem com a res­pi­ra­ção. Fechou os olhos, igno­rou o cheiro dos remé­dios e dos chás, e sentiu-​se de novo na noite da Serra dos Caramonos.[…]

Gol de Placa, Gol de Pato — Parte 2

Haviam deixado para mim a camisa 2, embora eu fosse pivô, e eu secretamente gostara disso, porque achava que era o meu número de sorte. Comecei o aquecimento enquanto Leleco tomava analgésicos e derramava lágrimas surdas. Meus companheiros de time pareciam não acreditar. — Geraldo, vê se não estraga. — Gente, confiem em mim, quando meu time precisou de mim no torneio, lembrem, eu entrei e marquei três vezes. — Marcou sim, lembrou o Xandão. Entrou num jogo que ganharam de 26 a zero, quando […]