Ser Forte e Ser Bom

Se posso destruí-lo, então eu sou melhor do que você. Assim funciona o argumento da força, a ética da opressão. Intimidação física enquanto argumento não é algo tão fácil de detectar porque é a ideologia do poder, é assim que se impõem as leis. E é assim que se fazem os heróis: matando, explodindo, derrubando. O poder de construir algo belo não é tão admirado quanto o de destruir qualquer coisa, bela ou não. Uma arma fascina mais do que uma colher de pedreiro. O […]

Uma Brevíssima e Amadora Análise do Conto Medieval Português «A Dama Pé de Cabra».

Incluído nos “Livros de Linhagens” da nobreza lusitana está um breve relato sobre a família de Diego Lopes, que inclui uma personagem que ficou célebre: a misteriosa mulher montanhesa com pés de cabra. Tata-se de uma história interessante por envolver profundamente as fantasias populares lusitanas (e estas fantasias, claro, ecoam na nossa própria cultura). Aspectos culturais Como se verá, a deficiência física (um pé deformado) era um sinal de deficiência moral. A Dama Pé de Cabra é apresentada como uma espécie de bruxa, e o […]

Descobri que eu Era um Péssimo Poeta

Cada vez que acho um poema perdido numa gaveta ou num arquivo virtual amarelado pelos bits do tempo, convenço-me mais de que nunca fui realmente poeta. Fazia versos: não é a mesma coisa. Poeta é alguém que consegue escrever de vez em quando três ou quatro linhas que embasbacam até quem não sabe o que é poesia. Eu nunca fui desses, então nunca fui poeta. Tenho mais de 1200 páginas de poesia devidamente escrita e catalogada, dolorosamente catalogada e editada ao longo de vinte anos. […]

Uma Noite em 1993

Era 1993 e eu estava voltando da faculdade, tarde da noite. Havia um burburinho de flamenguistas em um bar assistindo Boca x Flamengo. Os argentinos ganhavam por 1 x 0. Aproximei-me receoso para ver o placar e justo quando cheguei os argentinos marcaram. Gritei Goooooooooooooool e de repente me vi cercado de olhares ferozes. Algumas pessoas se levantavam da cadeira. Sebo nas canelas. Mas era difícil correr gritando— Felizmente sobrevivi para contar a história, e sobrevivi feliz!

Tristeza Nova

A tristeza deste século que chega será de não haver mais horas mortas e nem fantasmas nelas. Um mundo iluminado, limpo e organizado, sem espaço para transgressões. A melancolia será subterrânea e todos acuados, teremos de ter e de ostentar. Os seres tristes sorrirão também e se atracarão às luminárias em busca de pé no remoinho. A agonia que haverá na nova era será o som do mundo ininterrupto acima da perspectiva do infinito, mais forte que o pulsar dos corações. Um mundo preenchido, pleno […]

A Falta que Faz a Educação

Não me refiro à educação escolar, essa que sucessivos governos parecem querer dificultar, mas à educação cidadã e humana, que cabe às famílias e a cada um de nós. Esta é a que faz mais falta, porque se trata da que não precisa de grandes investimentos, nem de grandes construções. Não dispende energia, não move terras e céus, não cria dívidas e nem polui. Não custa livros, não consome dinheiro, não requer transporte. Mas apesar de ser tão barata em termos econômicos, é caríssima em […]

O Tempo no Caminho

O velho relógio bate nove e quinze no peito sorrindo para um piano que tocou meu lábio como o som áspero da morte que vem perto. Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto, procuro um desvio que retarde a sorte certa que aguarda os relógios, lábios e pianos. Quando achar um caminho errado destes, escondo minutos da espera que não quero. Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa, a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

Tivemos Futuros Promissores

Américo dizia-se amargo de propósito: queria treinar rabugice para quando fosse famoso. Então poderia esnobar entrevistas e desfilar namoradas bonitas em carros do ano. Não conseguia nem ficar famoso e nem realmente ser amargo: era apenas triste e apagadiço. Sentava-se na primeira das carteiras para fingir ser estudioso, mas andava sempre com notas ruins e sapatos rigorosamente engraxados. Meticuloso em suas escolhas, enquanto não ficava famoso e amante de modelos perfeitas deixou-se namorar por Jaqueline, que era vesga, magra, sardenta, desconjuntada e fanha. Casou com […]

Nunca Será Demais Ler Fernando Pessoa

Eu tinha meros vinte e dois anos quando adquiri de um vendedor ambulante, em visita à faculdade onde cursava História, um exemplar da «Obra Poética» de Fernando Pessoa, publicada pela Aguilar. Na época achei caro, demorei a compreender que havia comprado um dos tesouros mais valiosos que possuo. A edição é cuidadosa, acompanhada de biografia com fotos e de extensos comentários. Tudo muito dispensável, claro, quando você entra no que interessa, que é a poesia. Sempre que ouço um babaca falar alguma coisa contra a […]