Falta de Civismo… e de Civilização

Apesar de identificado quase absolutamente com tudo quanto a esquerda representa, eu confesso que sou um coração que ainda se agita quando ouve o bater de um tarol. As comemorações da Independência evocam lembranças boas de minha infância, era uma ditadura, mas nós éramos felizes. Havia censura, mas o mundo era um pouco mais inocente, éramos meninos e tínhamos nossos ídolos. Meus amigos e eu sonhávamos em estudar no Colégio Cataguases só para podermos desfilar no Sete de Setembro envergando o uniforme de gala com […]

Línguas Podem Ser Imaginadas

Tolkien dizia ter um “prazer secreto”, verdadeira motivação por trás da escrita do “Senhor dos Aneis”: inventar línguas. É um passatempo muito antigo, diversão de grandes QIs. Nos seus primórdios, ainda não elevado ao estado de arte, produziu línguas pensadas para serem veículos neutros de comunicação internacional, como o esperanto. Posteriormente, constatada a inviabilidade de tal projeto (pois todos detestam unanimemente o esperanto), os fazedores de línguas passaram a ousar, e surgiram coisas diferentes.

Sonhos Estranhos

Esta noite sonhei com o meu melhor amigo. Não, não foi a primeira vez, apenas foi um sonho estranho o suficiente para merecer que eu o lembrasse. Um dia imagino que um semiólogo ou crítico queimará pestanas tentando decifrar-me a partir de textos como esse, então escrevo para dar-lhe trabalho. Ou para apenas me divertir lembrando.Estávamos em uma fábrica, uma fábrica que estava prestes a fechar, mas os trabalhadores não sabiam disso. O ritmo de produção era tão frenético como sempre, os contramestres andavam de um lado a outro pondo na linha quem estivesse morcegando e caminhões chegavam e saíam trazendo ou levando matéria prima e mercadorias. Então, subitamente o Kid Abelha apareceu, com um palco montado sobre uma estrutura de aço, talvez um guindaste, e tocou os operários um rock denúncia que tinha uma letra mais ou menos assim:Vocês que continuam

Assombrações

A memória especial de a ter beijado um dia se apagou de mim sem pressa e sem pensar. Rostos pálidos pintados em paredes brancas, fadas esqueléticas que voam nuas pelo ar — o passado é só mais uma entrega que faltou. Eu podia ter perdido toda esta carne um dia, e podia ter vendido até a vida desta casa, mas só deixei levarem os meus sonhos embora em embrulhos secos, cortados em pedaços — se eu esquecesse tudo em que cria então talvez eu poderia […]

O Último Reduto

Júlio era um “programa humano”. Esse era o nome pelo qual os líderes do Magistério Supremo os chamavam. Pessoas cujos cérebros haviam recebido, ao longo de uma vida inteira, informações subliminares destinadas a prepará-las para o momento em que o Grande Mestre resolvesse usá-las. Todos sabiam que os programas humanos eram amplamente conduzidos na Terra inteira e muitos os odiavam, mas vivia-se um tempo em que até odiar o Magistério já se tornara algo cuidadosamente controlado, pelo Magistério. Sempre tivera a impressão de que o […]

Duas Opiniões Sobre os Clássicos e os Novos

Certo escritor nativo de minha cidade natal tinha o hábito de responder, sempre que lhe perguntavam insistentemente se já havia lido o livro de algum jovem autor revelado recentemente, ou os originais submetidos por algum amador: “Eu ainda não tive tempo para terminar de ler Platão [ou Joyce ou Dostoiévski ou algum outro clássico] e você acha que eu já tive tempo de ler isso aí?” Lem­brei desta frase quando hoje tomei conhecimento da iniciativa Movimento em Prol dos Escritores Brasileiros Desconhecidos, divulgada pela Laura […]

Sou Amador, e Sempre Serei

Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pen­samento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de […]

Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão…

As guirlandas e cachecóis vermelhos eram parte de costumes do casamento em muitas culturas. O vestido vermelho do casamento era moda em Nuremberg no séc. XVIII, mas esta tradição é desde as épocas romanas: As noivas romanas eram envolvidos em um véu vermelho impetuoso, o *flammeum*, para trazer amor e fertilidade. Os noivos gregos, albanianos e armênios ainda hoje usam véus vermelhos. Os nubentes chineses estão trajando vestimentas vermelhas para o casamento e são carregados durante a cerimônia numa maca vermelha. Os vizinhos trazem ovos vermelhos aos pares depois que uma criança é carregada.

Mais um Concurso de que NÃO Participarei

Sempre tive reações indecisas diante de cada concurso literário de que ouvi falar em toda a minha vida. Uma das primeiras coisas que li a respeito de meu poeta favorito, Fernando Pessoa, foi que tirou o segundo lugar no único concurso de poesia de que participou em vida. Eu tinha dezesseis anos quando li isso numa biografia do Poeta. De lá para cá as notícias de concursos que dão errado não param de me perseguir, como a recente polêmica sob a premiação de Chico Buarque […]

Marlene, Número 156

Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.[…]